HISTÓRIA DE UMA CONTROVÉRSIA - TIRÓIDE OU TIREÓIDE ?
A controvérsia quanto
ao nome da glândula, se tiróide ou tireóide, é
bem antiga e perdura até o presente.
Procurando analisar as razões
desta controvérsia do ponto de vista histórico-filológico,
chegamos à conclusão de que se pode defender qualquer uma
das formas.
Na revisão da literatura,
não encontramos qualquer referência a Aristóteles como
o criador do nome da glândula. Além de não haver registro
à pretensa autoria de Aristóteles nas obras por nós
consultadas (1-4), também não há menção
à glândula no seu tratado traduzido em latim por De partibus
animalium. (5)
Também se afirma
que Galeno foi quem denominou a glândula de tireóides.
Na obra de Galeno não há referência à glândula.
Galeno descreveu somente a cartilagem que recobre a laringe, a que denominou
kóndros
thyreoeidés (de thyreós,
escudo. e
eidés,
semelhante a), mas não a glândula.(6)
Assim descreve Galeno a
cartilagem: "Quando se afastam os músculos que vão da laringe
ao esterno, vê-se claramente que aí há uma grande cartilagem
cuja forma é semelhante a de um escudo na parte anterior". (7)
Teria Galeno comparado a
cartilagem a um escudo, não tanto pela sua forma, mas por sua função
protetora, resguardando a laringe?
Os gregos usavam mais de
um tipo de escudo e o tipo que deve ter inspirado Galeno na descrição
da cartilagem é de um escudo longo denominado thyreós.
A palavra grega thyreós
é bem antiga na língua grega e é encontrada na narrativa
da Odyssea, de Homero, para nomear uma grossa laje de pedra que
o cíclope Polifemo usava como porta para impedir a entrada em sua
caverna (8).
No Dictionnaire étymologique
de la langue grecque, de Chantraine, não há uma entrada
especial para thyreós, que só aparece no verbete
thýra
como
um de seus derivados. Thýra
designa porta de casa,
batente de porta. O plural de thýra, thyrai, é
uma porta de dois batentes, ou seja, com duas folhas. Para as portas das
muralhas que cercavam as cidades, os gregos tinham outro nome: pýle,
pylai. [3,9]
Deduz-se que o escudo longo
usado pelos gregos recebeu o nome de thyreós
pelo
seu formato semelhante a uma porta. Skinner observa que este tipo de escudo
recobria a frente do soldado, do pescoço aos tornozelos e, possivelmente,
o nome que lhe foi dado, de thyreós, se deve ao primitivo
costume de utilizar uma porta como escudo. [4]
Embora Vesalius tenha dissecado
e identificado a glândula, a denominação de tiroide
se
deve a Warthon, quem a descreveu em 1646, grafando
thyroide e não
thyreoide
em seu livro Adenographia, escrito em latim. Aparentemente, assim
a chamou por sua localização topográfica junto à
cartilagem descrita por Galeno (ad latera cartilaginum thyroidis)
e não pela sua forma. (10). O nome de batismo da glândula,
portanto, foi escrito com a raiz thyro-
e não thyreo-.
A
figura ao lado, do livro de Idel Becker, (10) é a reprodução
fac-similar do trecho da
Adenographia, edição de 1699,
no qual se vêem assinaladas as palavras com a raiz thyro-
Vemos que há uma
estreita conexão entre thyreós, escudo, e thýra,
porta. Certamente por esta razão, o Webster dictionary
dá a seguinte etimologia para tiróide:
"Thyroid, from greek
thyreoeides,
shaped
like a shield, from
thyreós,
shield shaped like a
door (from thyra,
door)" [11]
O dicionário da Real
Academia Española é mais incisivo ao vincular o nome
da glândula à thyra, porta:
"Tiroides – do gr. Thyroeides,
semejante
a una porta." [12]
Em latim, na Tabulae
Anatomicae, Julius Casserius, em 1627, portanto 19 anos antes da descrição
de Warthon, usou a raiz Thyro- para os músculos
do pescoço relacionados com a cartilagem tiróide.
Em 1718, Blancard, em seu
Lexicum
Medicum, assim se refere à glândula:: "Thyroidae
glandulae sunt numero duae." "Thyroides est scutiformis cartilago
larynges. Ex tireós, janua, scutum e eidos, forma". [13]
Vê-se que, mesmo derivando o nome da glândula do gr. thyreós,
este autor adota em latim a forma thyro- (sem o e).
Os dicionários da
língua portuguesa do século XIX (Constâncio, 1845;
Faria, 1856; Lacerda, 1874; Domingos Vieira, 1874; Caldas-Aulete, 1881)
averbam thyroide, thyroideo,
thyroidea,
tanto para a glândula como para a cartilagem, embora derivem a raiz
thyro- do
gr. thyreós,
escudo. Faz exceção o dicionário
de Caldas-Aulete que deriva thyro- do gr. thýra,
porta, tanto para a cartilagem como para a glândula.
A partir do léxico
de Cândido de Figueiredo, de 1899, começa a prosperar a forma
thyreo-,
simplificada
posteriormente para tireo-
em razão da reforma ortográfica.
Talvez por influência
dos dicionários franceses com a assinatura de Littré, que
exerceram grande influência na terminologia médica usada em
vários países, inclusive no Brasil, os médicos brasileiros
passaram a adotar a forma tíreo-
Ramiz Galvão, em
1909, em seu Vocabulário etymologico, ortographico e prosodico
das palavras portuguesas derivadas da língua grega, averba
Thyreoide
e assinala: "Os livros e os léxicos antigos davam
thyroide;
mas já Littré advertiu com acerto que isso se deve corrigir."[14]
Littré e Robin, na
13ª edição de seu Dictionnaire de médecine,
de chirurgie, de pharmacie, de l’art vetérinaire et des sciences
qui s'y rapportent, de 1873, escrevem: "Thyreoïde. De thyreós,
bouclier, et eides, ressemblance. On écrit ordinairement thyroïde,
mais thyroïde viendrait de thyra, porte".[15]
A lição de
Littré e seus seguidores teve maior repercussão em nosso
país do que na própria França. Bloch e Wartburg, que
também atribuem a forma thyroïde a um erro de transcrição,
consideram-na vitoriosa, como se deduz do seguinte trecho. "Thyroïde.
Empr. du grec thyroeides, qui a la forme d’une porte: pris par confusion
par suite d’une faute de copiste dans Oribase, à la place de thyreoeides,
qui a la forme d’un bouclier. Littré a essayé, mais vainement
de rectifier le mot fr. en thyreoïde".[16]
No Brasil, ao contrário,
a forma tireo- encontrou muitos adeptos.
Em 1930, a Academia Brasileira
de Letras designou uma Comissão para elaborar o seu dicionário
da língua portuguesa. Na sessão de 24 de abril de 1930 a
Comissão aprovou o parecer de Medeiros e Albuquerque, propondo a
grafia tiróide.[17].
A decisão da Comissão
foi contraditada por ilustres médicos da época, dentre os
quais cumpre destacar, por seus conhecimentos lingüísticos,
além de Ramiz Galvão, Pedro Pinto e Mangabeira-Albernaz.
São de Pedro Pinto
as seguintes palavras: "Foi usual a forma errada tiróide, hoje mais
ou menos em abandono."[18] Mangabeira-Albernaz, em trabalho extenso e erudito,
procurou demonstrar as falhas da argumentação de Medeiros
e Albuquerque (que não era médico), e interroga: "Por que
haveremos de dizer tiróide, vocábulo errado, somente porque
o fazem franceses, ingleses e espanhois?" [19]
Desde então, ambas
as formas vêm sendo utilizadas e são aceitas pelo Vocabulário
Ortográfico da Academia Brasileira de Letras.[20]
A Nomina Anatomica,
que é redigida em latim e tem validade internacional, nas suas primeiras
edições usou a raiz thyreo-. A partir da edição
de 1960 (Nomina de Nova York) [10] mudou para thyro-,
que
foi mantida até a edição mais recente, publicada em
1998 com o título de Terminologia Anatomica. [21]
Apesar disso, na tradução oficial para a língua portuguesa,
a raiz
thyro- foi mudada para tireo- pela Comissão
de Terminologia da Sociedade Brasileira de Anatomia.[22]
Pesquisando em bases de
dados do programa LILACS da BIREME, encontramos 258 artigos com o nome
da glândula no título, sendo que em 62 os autores usaram a
forma tiróide
e 196 tireóide. Em espanhol,
em que a glândula se denomina
tiroides
(com s no final da
palavra) há 302 artigos indexados, todos com a raiz
tiro-
e
nenhum com a raiz tireo-. Atribuímos o predomínio
da forma tireóide em língua portuguesa ao fato de
ter sido esta forma oficialmente adotada nos Descritores em Ciências
da Saúde da BIREME.
Em face de quanto foi exposto
neste comentário, parece-nos que se pode defender, do ponto de vista
histórico-filológico, ambas as formas, considerando o vínculo
existente entre thyreós, escudo, e thýra,
porta. Em outros idiomas (inglês, francês, espanhol, italiano)
prevalece a raiz thyro- Em alemão, em que a glândula
tiróide é chamada schilddrüse, de schild,
escudo, e drüse, glândula, usa-se de preferência
thyreo-.
Contudo, modernamente já se emprega a raiz thyro-
para designar
a própria glândula (Thyroidea) e em alguns cognatos
como thyroxin, thyronin, thyrogen, thyroidektomie, thyroideus.[22]
Seria desejável a
opção por tiro- também em português,
em benefício da uniformidade internacional da terminologia científica.
Referências
1. BAILLY, A. - Dictionnaire grec-français, 16.
ed. Paris, Lib. Hachette, 1950.
2. LIDDELL, H.G. , SCOTT, R. - A greek-english lexicon,
9.ed., Oxford, Claredon Press, 1983.
3. MARCOVECCHIO, E. - Dizionario etimologico storico
dei termini medici. Firenze, Ed. Festina Lente, 1993.
4. SKINNER, H.A. - The origin of medical terms, 2.ed.
Baltimore, Williams , Wilkins, 1961, p. 404..
5. ARISTÓTELES - Parts of animals. The Loeb Classical
Library. Cambridge, Harvard Univ. Press, 1983
6. GALENO, C. – Procedimenti anatomici. (Trad. italiana
por Garofalo, I.). Libro XI.1, Milano, Biblioteca Universale Rizzoli, 1991,
p. 905
7. DURLING, R.J. – A dictionary of medical terms in Galen.
Leiden, E.J.Brill, 1993, p. 181
8. HOMERO - Odyssea 9:240,313 (trad. ingl.) The Loeb
Classical Library, Vol I, p. 332. 338. 1998.
9. CHANTRAINE, P. Dictionnaire étymologique de
la langue grecque. Histoire des mots. Paris, Ed. Klincksieck, 1984, p.
446
10. BECKER, I; - Nomenclatura biomédica no idioma
português do Brasil. São Paulo, Liv. Nobel, 1968, p. 314-329
11. WEBSTER’S THIRD NEW INTERNATIONAL DICTIONARY. Chicago,
Enciclopedia Britanica Inc., 1966.
12. REAL ACADEMIA ESPAÑOLA - Diccionario de la
lengua española, 19.ed. Madrid, 1970.
13. BLANCARD, S.- Lexicon medicum graeco-latino-germanicum,
5.ed., Hallae Magdeburgicae, 1718, p. 321.
14. GALVÃO, B.F. R.- Vocabulário etymologico,
ortographico e prosodico das palavras portuguesas derivadas da língua
grega. Rio de Janeiro, Liv. Francisco Alves, 1909.
15. LITTRÉ, E. , ROBIN, Ch. - Dictionnaire de
médecine, de chirurgie, de pharmacie, de l’art vetérinaire
et des sciences qui s'y rapportent, 13.ed. Paris, Baillière et Fils,
1873.
16. BLOCH, O, VON WARTBURG, W. - Dictionnaire étymologique
de la langue française, 7.ed. Paris, Presses Universitaires de France,
1986.
17. RIBEIRO, L. - Vocabulário médico. Folha
méd.
21:245-249, 1942.
18. PINTO, P.A. - Dicionário de termos médicos,
2.ed. Rio de Janeiro, 1938.
19. MANGABEIRA-ALBERNAZ, P.- Questões de linguagem
médica. Rio de Janeiro, Liv. Atheneu, 1944, p. 9-20.
20. ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS - Vocabulário
ortográfico da língua portuguesa, 3. ed. Rio de Janeiro,
Imprensa Nacional, 1999.
21. FEDERATIVE COMMITTEE ON ANATOMICAL TERMINOLOGY. -
Terminologia anatomica. Stuttgart, Georg Thieme Verlag, 1998, p. 74.
22. SOCIEDADE BRASILEIRA DE ANATOMIA. Terminologia anatômica.
São Paulo, Ed. Manole Ltda., 2001, p. 90.
23 . BIREME - Internet. Disponível em 10/12/2005,
em http://bases.bireme.br
24. ZATKIN, M. , SCHALDACH, H. - Wörterbuch der
Medizin. Berlin, Ullstein Mosby, 1992.
Publicado em Arq. Bras. Endocrinol. Metab. 48(3):432-434, 2005
.
Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal
de Goiás
Membro da Sociedade Brasileira de História
da Medicina
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br