HISTÓRIA DA MEDICINA
VARÍOLA: UMA DOENÇA EXTINTA
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O
texto
deste artigo foi publicado em 2009 no livro "À sombra do
plátano" pela Editora UNIFESP. A reprodução do
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A varíola foi a primeira
doença infecciosa extinta da face da Terra pela vacinação
preventiva. A história da vacina
antivariólica merece ser relembrada pela magnitude da vitória
alcançada e pela esperança que o método nos
trouxe de obter a erradicação de outras doenças infecciosas.
Até o final do século
XVIII a varíola constituía verdadeiro flagelo humano, ceifando
vidas ou desfigurando o rosto dos sobreviventes com cicatrizes indeléveis
e perda de visão. Calcula-se que no século XVIII houve, somente
na Europa, 60 milhões de vítimas de varíola.
A varíola foi introduzida
no Brasil pelos colonizadores portugueses, vinda tanto da Europa como da
África. A primeira epidemia de varíola ocorreu em 1563, iniciando-se
na Bahia e causando cerca de 30.000 mortes. Os indígenas eram particularmente
vulneráveis e muitas tribos foram dizimadas por verdadeiras epidemias
de varíola. Calcula-se que a varíola tenha ocasionado maior
número de óbitos nos três primeiros séculos
de colonização do que todas as outras doenças reunidas.
Na luta contra a varíola,
os povos orientais utilizavam há mais de mil anos a chamada "variolização",
que consistia na inoculação de material retirado das pústulas
de um enfermo, na pele de um indivíduo são. Este adquiria
a enfermidade em forma mais branda do que através do contágio
natural. Contudo, apesar de sua relativa benignidade, a doença se
manifestava com todo o seu cortejo sintomático, deixando, por vezes,
cicatrizes no rosto e no corpo das pessoas inoculadas.

O método da variolização
estendeu-se aos países do ocidente no século XVIII, graças
sobretudo à esposa do embaixador inglês em Constantinopla,
Lady Montagu, famosa por sua beleza e elegância. Em 1717 ela fez
inocular seu filho de 3 anos de idade e, em 1721, já de volta à
Inglaterra, sua filha de 5 anos. A corte real inglesa interessou-se pelo
método, que passou a ser chamado de bizantino, em alusão
à Bizâncio, antigo nome de Constantinopla (hoje Istambul).
A variolização difundiu-se prontamente na Inglaterra e teve
defensores ilustres em outros países, como Von Haller na Alemanha,
Voltaire na França, e Benjamin Franklin nos Estados Unidos.
A 17 de maio de 1749 nascia
na pequena cidade de Berkeley, na Inglaterra, Edward Jenner, predestinado
a revolucionar o método de prevenção da varíola.
Submetido ele próprio, na infância, à variolização,
o que mais o impressionou não foi tanto a inoculação
em si, porém os preparativos para a mesma, que consistiam em sangria,
purgativos e dieta de fome.
Na região de Gloucestershire,
na Inglaterra, onde se localiza a cidade de Berkeley, o gado era acometido
com frequência de uma doença com alguma semelhança
com a varíola humana, conhecida por
cowpox. As vacas acometidas
por esta doença apresentavam vesículas e pústulas
no ubre e as pessoas que as ordenhavam adquiriam a doença, manifestando
lesões semelhantes nas mãos, lesões estas que desapareciam
espontaneamente.
Era observação
corrente entre a população rural que as pessoas que adquiriam
a
cowpox ficavam protegidas da varíola humana, conhecida
em inglês por
smallpox.
Decidido a estudar medicina,
Jenner freqüentou inicialmente o Serviço de um reputado médico,
Ludlow, em Sodbury, onde certa vez ouviu uma paciente dizer: "eu não
posso ter smallpox, pois já tive cowpox". Esta frase
ficou retida em sua memória e foi o leit-motiv de todas as
suas observações em anos posteriores.
Transferindo-se para Londres
a fim de dar continuidade aos seus estudos, conheceu o cirurgião
e grande pesquisador, que foi John Hunter, de quem se tornou discípulo
dileto e com quem adquiriu o gosto pela observação meticulosa
e pela investigação científica. Voltando a clinicar
em Berkeley, a idéia de proteger as pessoas contra a varíola
humana (
smallpox) por meio da varíola bovina (
cowpox)
tornou-se uma obsessão. Durante 20 anos, Jenner, pacientemente,
colecionou observações que demonstravam que os indivíduos
previamente contaminados pela doença bovina ficavam refratários
à varíola.
Em maio de 1796 realizou
a sua experiência crucial. Uma mulher, de nome Sara Nelmes, havia
adquirido a varíola bovina ordenhando vacas doentes. Jenner inoculou
a linfa retirada de uma vesícula da mão direita de Sara Nelmes
na pele do braço de um menino de 8 anos, de nome Jacobo Phipps.
A criança desenvolveu a conhecida reação eritêmato-pustulosa
no local da escarificação e escassos sintomas gerais. Decorridas
6 semanas Jenner inoculou o pus da varíola humana na criança,
com resultado negativo. Estava descoberta a vacina antivariólica.
Somente em 1798, depois
de ter inoculado com sucesso mais três pacientes, fez a sua primeira
comunicação à Royal Society, de Londres, da qual era
membro. Recebeu em resposta uma advertência de que "deveria zelar
pelo bom conceito de que desfrutava na Sociedade por suas comunicações
anteriores e que não deveria arriscar o seu nome expondo ante a
sábia Sociedade nada que estivesse em desacordo com os conhecimentos
consagrados". As comunicações anteriores de Jenner a que
aludia a Royal Society referiam-se à história natural do
cuco, ave comum na Europa.
A atitude da Royal Society,
uma respeitável instituição científica, pode
parecer ridícula nos dias de hoje. Em todas as épocas, entretanto,
as grandes inovações são recebidas com reserva e até
hostilidade por seus contemporâneos. Os próprios amigos de
Jenner, em Berkeley e em Londres, opuseram-se à idéia de
inocular a vacina de origem bovina em seres humanos. Jenner chegou a ser
ridicularizado.
Decidiu então publicar
o resultado de suas observações por conta própria,
sem aprovação da Royal Society, o que fez em um pequeno livro
de 74 páginas, intitulado "An inquiry into the causes and effects
of the Variolae vaccinae, a disease discovered in some of the Western Counties
of England, particularly Gloucestershire and known by the name of cowpox"
(Investigação sobre as causas e efeitos da varíola
da vaca, uma doença descoberta em algumas províncias a oeste
da Inglaterra, particularmente Gloucestershire e conhecida pelo nome de
cowpox.
Por algum tempo houve muita
resistência e crítica ao método de Jenner. Parecia
absurdo introduzir no corpo humano o germe de uma doença de animal.
Apesar disso, a vacinação
antivariólica difundiu-se por todo o mundo. Muito contribuiu para
a sua credibilidade a decisão de Napoleão Bonaparte mandando
vacinar o exército francês, que ficou imune à varíola.
Jenner tornou-se famoso
e o Parlamento inglês concedeu-lhe um prêmio de 10.000 libras
esterlinas em 1802 e outro de 20.000 libras em 1807.
No Brasil, a vacinação
antivariólica foi tornada obrigatória ainda no século
XVIII, porém era praticada de maneira irregular e ao mesmo tempo
combatida e rejeitada pela população. Os surtos epidêmicos
continuaram ocorrendo no século XIX e a vacinação
só se tornou efetiva a partir do século XX, após a
campanha iniciada no Rio de Janeiro por Oswaldo Cruz.
Em 1980, menos de 200 anos após
a descoberta da vacina, a Organização Mundial de Saúde
declarava erradicada a varíola da face da Terra.
O adjetivo latino vaccinae
(de
vaca) foi substantivado e adaptado a todos os idiomas de cultura: inglês,
vaccine;
francês, vaccin; alemão,
vakzine; espanhol,
vacuna;
italiano, vaccino; português,
vacina. Por analogia,
passou a designar todo inóculo dotado de ação antigênica,
independente de sua origem.
A vaca, considerada um animal
sagrado em certas seitas religiosas da India, foi, assim, consagrada também
pela ciência no termo vacina.
Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade
Federal de Goiás
Membro da Sociedade Brasileira de História da Medicina
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br