A VIDA BREVE DE ALGUNS PERSONAGENS FAMOSOS
DA HISTÓRIA DA MEDICINA
Na memória da medicina
encontramos exemplos de médicos e cientistas que tiveram uma curta
existência e que, apesar disso, deixaram seus nomes inscritos na
História da Medicina pelo que lograram realizar.
Escolhemos como exemplos
personagens que não chegaram a ultrapassar 40 anos de idade e que
tiveram idéias inovadoras, fizeram descobertas importantes, trabalharam
arduamente, publicaram obras notáveis ou lutaram com determinação
contra a inércia da ciência oficial de sua época.
Vejamos de modo resumido
a vida e a obra de alguns deles:
Oswald Croll (1580-1609). Médico alemão. Faleceu aos 29 anos. Foi um seguidor entusiasta de Paracelsus e um precursor da homeopatia, aceitando a idéia de que a doença se cura com os medicamentos capazes de provocá-la (similia similibus curantur).Foi, assim, um precursor de Hanemann. Deixou uma obra publicada com o título de Basilica Chymica, editada em Frankfurt em 1608, na qual descreveu várias substâncias químicas usadas como medicamentos, tais como ácido succínico, éter sulfúrico, ácido clorídrico e calomelano.
Jacob Bontius (1592-1631).
Médico holandês. Faleceu aos 39 anos. Estudou em Leyden, recebendo
o grau de médico em 1614. Em 1627 ingressou na Companhia das Indias
e foi enviado à Batávia. Seus conhecimentos de medicina tropical
eram precários e em apenas quatro anos em Java descreveu várias
doenças encontradas na colônia holandesa, inclusive o beribéri,
assim como a flora e a fauna da região. Sua obra principal De
Medicina Indorum foi publicada por seu irmão William Bontius
sete anos após a sua morte.
Regnier de Graaf (1641-1673). Médico holandês.
Faleceu aos 32 anos. Ainda como estudante, foi o primeiro a obter a secreção
pancreática. Através da abertura do duodeno de um cão,
conseguiu cateterizar o ducto de Wirsung com a haste
oca de uma pena e obteve suco pancreático puro. Até então
desconhecia-se a função do pâncreas, considerado como
um apoio para o estômago ou um órgão de convergência
de vasos quilíferos. A experiência de Graaf da fístula
pancreática só foi repetida por Claude Bernard no século
XIX. Estudou posteriormente com detalhes a anatomia dos órgãos
sexuais masculinos e femininos e descreveu o fenômeno da ovulação
e os folículos ovarianos que contêm os óvulos em fase
de maturação, hoje conhecidos como
folículos de
Graaf, conforme a denominação dada por Haller em 1730.Deixou
ainda um tratado sobre clisteres, método terapêutico muito
empregado na época.
John Mayow (1643-1679).
Físico inglês. Faleceu aos 36 anos. Robert Boyle, físico
inglês de quem Mayow fora discípulo, havia demonstrado que
uma vela se apaga e que um camundongo morre na ausência do ar atmosférico.
Admitia-se que o ar atmosférico continha dois componentes importantes:
o "ar do fogo" e o "ar vital". Mayow colocou sob a mesma campânula
uma vela acesa e um camundongo e verificou que ambos os fatos ocorriam
na metade do tempo, o que demonstrava que o "ar do fogo" e o "ar vital"
eram um só e único componente gasoso do ar atmosférico.
Mayow foi o primeiro a compreender o mecanismo da respiração
e a combater a teoria de que o ar inspirado destinava-se a refrigerar o
coração. Atribuiu a cor mais vermelha do sangue arterial
ao seu maior conteúdo em "ar do fogo". Seus trabalhos foram simplesmente
ignorados pelos seus contemporâneos.
Giorgio Baglivi (1668-1707).
Médico italiano. Faleceu aos 39 anos. Foi um dos criadores da escola
iatrofísica, segundo a qual o organismo humano poderia ser esquematizado
com base em modelos mecânicos. Assim, o coração poderia
ser comparado a uma bomba, o pulmão a um fole, os músculos
a alavancas, a mucosa intestinal a peneiras e assim por diante. Considerava,
entretanto, a iatrofísica como especulação teórica
sem aplicação na prática médica. Era um clínico
brilhante e seguia a medicina hipocrática. Dizia que não
havia livro mais sábio do que o próprio enfermo e que aquele
que sabe diagnosticar sabe tratar.
Kurt Sprengel (1766-1803). Médico alemão. Faleceu
aos 37 anos. Estudou teologia e, a seguir, medicina. Foi um eminente historiador,
botânico e professor de medicina em Halle. Reconhecido como um scholar,
dominava as línguas semíticas. Sua obra consta de 5 volumes,
publicada em alemão, sob o título Versuch einer pragmatischen
Geschichte der Arzneikund
(Ensaio prático e único sobre
a história dos medicamentos), tendo sido traduzida para o francês
e o italiano. Garrison considerou-a uma obra rica de informações
e sólidos conhecimentos.
M. François Xavier Bichat (1771-1802). Médico
francês. Faleceu aos 31 anos. Estudou em Montpelier, Lyon e Paris
e foi médico do Hotel Dieu nos dois últimos anos de sua
vida. Profundamente interessado nos problemas da vida e da morte, realizou
mais de 600 autópsias e chegava a passar a noite junto dos cadáveres;
Escreveu um tratado de anatomia descritiva denominado Anatomie génerale
appliquée à la physiologie,
em 4 volumes, no qual lançou
a idéia dos tecidos na formação dos órgãos.
Seu livro Recherches physiologiques sur la vie et la mort teve várias
edições e contém um grande número de observações
fisiológicas e patológicas. No prefácio da 5. edição,
publicado em 1829, assim se expressou Magendie referindo-se à Bichat:
" Son esprit observateur, son génie experimental, sa manière
lucide de présenter les faits expliquent la grande influence que
ce livre a exercé sur l’esprit des physiologistes et des médecins".
Henry Hill Hickman (1800-1830). Médico inglês.
Faleceu aos 30 anos incompletos. Desde os tempos de estudante em Edinburgh,
Hickman não se conformava com o sofrimento dos doentes durante as
intervenções cirúrgicas. Vivia em Ludlow, onde realizou
experiências em animais, operando-os sob a ação da
inalação do dióxido de nitrogênio. Notou que
os animais, sob a ação deste gás, não demonstravam
sentir a menor dor durante o ato cirúrgico e teve a idéia
de usar o mesmo processo no homem. Para tanto, solicitou permissão
à Royal Society, da qual faziam parte Davy e Faraday, que conheciam
a ação do dióxido de nitrogênio. Foi nomeada
uma comissão para apreciação do assunto e a autorização
lhe foi negada. Dirigiu-se, então, à Associação
Médica de Londres, onde sua solicitação foi recebida
com indiferença e ele foi considerado um visionário. Como
última tentativa, em abril de 1828, escreveu ao rei Carlos X, da
França, pedindo-lhe que desse a conhecer suas experiências
à Academia de Paris. Em sessão especial de 28.9.1828, a Academia,
com um único voto favorável do cirurgião Larrey, que
servira no exército de Napoleão, pronunciou-se contra, considerando
um crime expor o paciente a um risco adicional pela inalação
de gás. Velpeau, um dos mais consagrados cirurgiões da França,
declarou que considerava uma utopia a cirurgia sem dor. Amargurado, Hickman
voltou à Inglaterra e faleceu dois anos depois. A anestesia geral
na prática cirúrgica teria de esperar por mais 18 anos, quando
foi introduzida por Thomas Morton, no General Massachussets Hospital, em
Boston.
Daniel Carrión
(1859-1885).
Doutorando de medicina em Lima, Peru. Faleceu aos 26 anos. Duas doenças
acometiam a população dos andes peruanos e também
do Equador e da Colômbia: a febre de Oroya e a verruga peruana. Havia
dúvida se eram duas doenças independentes ou fases distintas
de uma mesma enfermidade. Carrión, sextanista do curso médico,
convenceu-se de que só havia um meio de resolver a questão:
inocular o material da verruga em um voluntário sadio. Decidiu pela
auto-experimentação e inoculou em si próprio o material
colhido de um jovem que apresentava lesão característica
da verruga peruana. Apresentou todos os sintomas da febre de Oroya e faleceu
39 dias após a auto-inoculação.Deste modo, com o sacrifício
da própria vida, demonstrou que a febre de Oroya e a verruga peruana
eram uma só e mesma doença. Em 1895, Odriozola propôs
para a doença o nome de doença de Carrión.
Sua etiologia só foi descoberta em 1909 por outro médico
peruano, Alberto Barton. O agente causal é uma bactéria que
recebeu o nome de Bartonella baciliformis em homenagem ao seu descobridor.
Na cidade de Lima há um monumento com a estátua de Daniel
Carrión.
Howard Taylor Ricketts
(1871-1910).
Médico norte-americano. Faleceu aos 39 anos. Graduou-se em medicina
em 1897 e dedicou-se à dermatologia e microbiologia. Seus primeiros
estudos referem-se à blastomicose causada pelo fungo
Blstomyces dermatidis ou doença de Gilchrist. A afim
de completar sua formação como pesquisador, estagiou na Inglaterra,
na Alemanha e na França. Regressando aos EE.UU. foi nomeado professor
associado de Patologia e Bacteriologia da Universidade de Chicago. Em 1906
foi encarregado de estudar a febre maculosa das montanhas rochosas no Estado
de Montana, onde realizou simultaneamente trabalhos de campo e de laboratório.
Descobriu que o transmissor da febre maculosa era uma espécie de
carrapato e conseguiu reproduzir experimentalmente a infecção
em macacos e cobaias. Em 1909 anunciou a descoberta do microorganismo
causador da doença, que ele julgava fosse um bactéria. Na
mesma época foi ao México investigar o tifo epidêmico,
ou tifo exantemático, doença semelhante à febre maculosa.
Descobriu com seu assistente Russell Wilder que o agente etiológico
se transmitia através do piolho (Pediculus corporis) A 3
de março de 1910 faleceu na cidade do México, vítima
do tifo exantemático.Seu nome foi imortalizado no nome de Rickettsia
proposto
por Henrique da Rocha Lima para o novo gênero de microorganismos
intermediários entre as bactérias e os vírus. As doenças
produzidas por Rickettsias denominam-se ricketsioses.
Gaspar de Oliveira Vianna
(1885-1914).
Médico brasileiro. Faleceu aos 29 anos. Natural do Pará,
fez o curso de medicina na Faculdade Nacional de Medicina, do Rio de Janeiro.
De uma inteligência brilhante, ainda como estudante
destacou-se por seu interesse pela histologia. Sua tese de doutoramento
versa sobre "Estrutura da célula de Schwann dos vertebrados", um
trabalho de histologia comparada. Em 1909, após a conclusão
do curso médico, foi convidado por Oswaldo Cruz para integrar a
equipe de Manguinhos como patologista. Uma de suas primeiras tarefas foi
a de estudar a anatomia patológica da doença que Carlos Chagas
acabara de descobrir em Minas Gerais – a Tripanosomíase americana.
Seus estudos sobre o ciclo do Trypanosoma cruzi e sua divisão
intracelular se tornaram clássicos. Da tripanosomíase passou
à leishmaniose e em 1911 descreveu a Leishmania brasiliensis
como
espécie diferente da Leishmania tropica, causadora do botão
do Oriente. Descobriu o tratamento da leishmaniose pelo tártaro
emético em solução a l% por via venosa, que era bem
tolerada pelos pacientes. Verificou ainda que o tártaro emético
tinha ação idêntica no calazar e no granuloma venéreo.
A mortalidade do calazar, que era de 95%, caiu para 5%. Em 1914, aos 29
anos, faleceu de tuberculose miliar disseminada, que contraira durante
uma autópsia, tornando-se, ao mesmo tempo, mártir da ciência
e benfeitor da humanidade.
Rosalind Elsie Franklin
(1920-1958).
Faleceu aos 38 anos. Foi uma das mais brilhantes pesquisadoras inglesas
do século XX. Formada em Físico-química em 1941 pela
Universidade de Cambridge, dedicou-se aos estudos de cristalografia por
raios-X. Realizou inicialmente pesquisas sobre o carvão, no esforço
de guerra da Inglaterra na segunda guerra mundial.
No após guerra dedicou-se inteiramente ao estudo da estrutura
do DNA trabalhando no King's College, de Londres. Esteve prestes a desvendar
a estrutura do DNA e seus achados foram fundamentais para que Francis Crick
e James Watson desenvolvessem o modelo de dupla hélice do DNA. Embora
utilizando dados e fotografias de raios-X obtidos por Rosalind Franklin,
Crick e Watson, não só não a incluiram no artigo original
publicado na revista Nature, como omitiram sua decisiva contribuição
na elucidação do problema. O mesmo fizeram com outro membro
da equipe a que pertencia Rosalind Franklin, Maurice Wilkins, que também
havia participado das pesquisas. Nos seus últimos anos de vida,
Rosalind Franklin realizou pesquisas sobre o estrutura do RNA viral, as
quais trouxeram novos e importantes conhecimentos no campo da biologia
molecular. A descoberta da estrutura do DNA mereceu o prêmio
Nobel em 1962, tendo sido contemplados Francis Crick, James Watson
e Maurice Wilkins. Rosalind Franklin, acometida por um câncer, havia
falecido em 1958. Em 1968 Watson escreveu um livro "The Double Helix",
no qual admitiu ter utilizado os dados e fotografias não publicados
de Rosalind Franklin, sem a sua permissão e sem o seu conhecimento.
Esta revelação lançou uma sombra na história
da mais importante descoberta do século XX e abalou o mérito
de Francis Crick e James Watson.
Fontes bibliográficas
MAJOR, R.H. - A history of medicine. Oxford, Blackwell
Scientific Publications, 1954.
FAHREUS, R. – Historia de la medicina. Barcelona, Ed.
Gustavo Gili, 1956
BICHAT, M.F.X. – Recherches phyisiologiques sur la vie
eat la mort, 5.ed. Paris, Gobon-Béchet Jeune Lib., 1829
ALTMAN, L.K. - Who goes first. The story of self-experimentation
in medicine. Berkeley, Univ. Calif. Press, 1998
MORTON, L.T. - A medical bibliography (Garrison and Morton),
4.ed. Hampshire, 1983
FALCÃO, E.C. – Opera omnia de Gaspar Vianna. CNPq
e outros., 1962
McGRAYNE, S.B. - Mulheres que ganharam o premio Nobel
em Ciências (trad.). São Paulo, Ed. Marco Zero, 1995, p. 317-344.
Joffre M de Rezende
Prof. Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal
de Goiás
Membro da Sociedade Brasileira de História
da Medicina
e-mail: pedro@jmrezende.com.br
http://www.jmrezende.com.br
01/11/2002 Atualizado em 19/03/2006.